e os urubus só pensam em te comer

Cinza. Tumulto. Barulho. Incômodo. Vazio. Não-amor. Eu achava que era pesadelo, mas agora, algumas horas depois de já ter despertado, percebo que o sonho continua. Parece que arrancaram meu recheio e o que vejo caminhando pela rua, tomando água, dando troco ao taxista, é um boneco sem governo. Roubaram o que eu tinha dentro e não me avisaram. Um bolo assando na minha cozinha, uma xícara de chá e um edredom macio enrolado nas pernas talvez me devolvessem um pouco da serenidade que se esvaiu sem o meu consentimento. E aí acordo me sentindo assim: uma cadela vira-lata ganindo sozinha, presa no alpendre de alguma casa antiga, de alguma cidade esquecida ou mesmo não inventada. Esperando que me tirem essa coleira e me façam qualquer carinho. E então eu vou virar de barriga pra cima e pensar que as coisas não são assim tão ruins.

*ilustra por Pedro Lucena